Demora sob a azinheira-caramanchão (4): cegueira botânica

Sabemos que o que vemos do mundo é apenas uma fracção de uma realidade complexa e com múltiplas camadas, que é filtrada pelos nossos sentidos, mas também pelas nossas práticas desses sentidos, que são por sua vez condicionadas pelo nosso contexto cultural e social, pela nossa história de vida e visão do mundo. Em suma, a realidade que experimentamos é uma construção individual e colectiva. Mas por mais que a nossa percepção da realidade externa seja limitada e distorcida, isso não nos desresponsabiliza como agentes de fazer mundo. Vem isto a propósito do fenómeno de ‘cegueira botânica’ a que aludi num post que escrevi em 2021. A expressão traduz uma incapacidade ou insensibilidade de notar ou reconhecer a diversidade do mundo vegetal à nossa volta (extensível a outros componentes do mundo-mais-que-humano, como os líquenes). As minhas demoras em Monsanto têm-me impelido a reflectir sobre o que impedirá muitas pessoas de ver e de se deslumbrar com a variedade de cores, formas, texturas, movimentos que as diferentes plantas exibem e como esses mesmos atributos vão variando ao longo de um dia, ou de vários dias, semanas ou meses. Desconfio que tenha a ver com uma disponibilidade e uma demora que permitem que se vá estabelecendo uma intimidade entre cada um/a de nós e esses outros seres, transformando progressivamente uma eventual indiferença ou estranheza em curiosidade e deslumbramento crescentes. Trata-se portanto de aprofundar uma relação, um estar-com que não precisa de para-quês ou de comos, que se contenta com a magia dessa co-presença e que intui as diversas agências dos outros seres viventes no co-fazer do mundo. Como se pode ler em ‘Vozes Vegetais’ (2021): “Vegetar é crescer em contiguidade com o mundo, coabitar lugares, aderir e fazer espaços, engajar-nos com aquilo que nos circunda – ou, antes, nos atravessa. Criar raiz e lançar sementes.” E acrescento: dar frutos. Ou seja, participar num com-viver que aprofunda e cuida do entre-corpos, recusando e resistindo às histórias de separação e de excepcionalismo que, na sua miopia ou cegueira, semeiam destruição e injustiça. Precisamos por isso de resgatar os espaços e o tempo que nos restituam a capacidade de ver, de sentir, de empatizar – numa palavra, de nos reencantarmos – com o mundo-mais-que-humano do qual somos parte integrante.

Álvaro

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